sexta-feira, 26 de julho de 2013

Deixe meu amor

por Pablo Capristano




Não há melhor tradução para a maneira contemporânea de se experimentar o amor do que o rock. Na sua simplicidade radical, na sua autenticidade, na compreensão crua que nasce antes de qualquer interpretação racional, é o rock que nos ensina o que é amar em tempos tão sombrios. Se pudesse fazer uma lista das grandes canções de amor que encontraram no rock seu fermento, não acharia lugar nessa lauda.

Pra mim, que sou anacrônico, que me sinto cada dia mais antigo, que cresci em um tempo diferente daquele em que minha alma mora, que teimo em não me satisfazer com o mundo, fazia uma data que já havia perdido a esperança de que o rock pudesse me oferecer mais alguma coisa. Por isso me refugiei em CDs antigos e velhos discos de vinil, ouvindo meus retalhos, minhas significações sonoras, as memórias dos sons que compuseram minha vida.

Então, quando menos esperava, fui pego nessa lufada de um vento velho, daqueles de agosto, que vem com sua fúria bandoleira arrastando dunas e soterrando as casas na beira da praia. O som de Talma&Gadelha me pegou na covardia. Quando estava desajeitado e desatento, caminhando meio que a esmo pelas ruas de mão única desse tempo infestado de batidas eletrônicas e de experimentações pretensiosas.

Fazia tempo, desde que o Bugs laçou seu primeiro CD no começo da década passada, que eu não tinha tanta vontade de escrever sobre uma banda de rock como tive agora. Desde que ouvi o primeiro CD de Talma&Gadelha, já tinha essa sensação. Já padecia desse sentimento inusitado de saber que, na dicção do rock, ainda havia espaço para uma comunicação direta com esse meu coração antigo.

Sei que, como fenômeno social, como força estética de revolução, o rock já deu o que tinha de dar. O problema é que Talma&Gadelha teimaram em me lembrar, que a crônica de nossos sentimentos ambíguos ainda pode encontrar eco na pegada distorcida e densa das guitarras, na simplicidade falsamente ingênua daquele roquezinho antigo que fala no corte aberto, sempre quente, dessa avalanche de insanos devaneios que alguém batizou de amor.

É o amor, que são tantas coisas nestes tempos de pós-tudo. É o amor a armadilha fundamental que nos transporta em direção à origem. É o amor que rasga nosso verniz de modernidade e faz nascer aquela seiva demodê, aquele cortejo de esperanças loucas, aquela comunhão que nos liberta do mundo.

Sou anacrônico, amigo velho. Não acredito em amor que não seja uma ferramenta de transcendência. Não acredito em amor que não reapresente o mundo com uma força tectônica tão poderosa que move a vida de um sujeito por décadas, mesmo depois que o terremoto da paixão já tenha deixado de fazer seus estragos mais visíveis.

Pra mim, nesses dias em que se anuncia a metade da minha vida, foi “Saturno”, canção do disco Maiô, com sua vibração grunge, com sua melodia que desempacota a alma, que dá voz a nossa solidão; foi essa canção que me ofereceu uma visão desse amor sem cabimento que insiste em nos assombrar, mesmo quando pensamos estar seguros, bem longe de sua influência libertadora.

Saturno é o senhor do tempo, o mestre do karma. Ele ensina pela dor e cauteriza nossas fantasias. Ceifa o assombro de nossos sonhos, mas abre caminho para que a novidade surja, no meio das cinzas que o antigo deixa pelas margens do caminho. Quando um novo tempo quer nascer, e um tempo antigo não se deixa morrer, é Saturno que castiga os apegados com suas hostes de monstros.

Mas o amor, tal qual menino malcriado, é uma mentira contra o tempo.

Ele engana Saturno, reinventando o passado a partir de um presente tão intenso, que redimensiona as coordenadas de nosso futuro. Eu, que há mais de quinze anos insisto em amar a mesma mulher, sei que o amor nunca fracassa. Somos nós, desajeitados e desatentos, encantados pela banalidade do mundo, que o deixamos sorrateiramente se ocultar nas frestas da memória.

Até que uma canção o extraía de seus mais elaborados esconderijos.

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